Top

Quanto o brasileiro paga pela burocracia?

Quanto o brasileiro paga pela burocracia?

Matéria publicada no Valor Econômico em 19.03.2021 por Joice Bacelo

É muito difícil escapar das garras do Leão brasileiro — as girafas que o digam. Quando um zoológico do interior de Santa Catarina assinou contrato de permuta com outro dos Estados Unidos, acreditou que estava apenas trocando 32 aves nacionais por três girafas. O felino não quis saber e atacou na alfândega brasileira. A mordida foi de quase US$ 23 mil.

O caso percorreu todas as instâncias do Judiciário. Foi concluído com uma decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em 2019. Manteve decisão do Superior Tribunal de Justiça, validando parte da cobrança da Receita Federal: US$ 7,79 mil em PIS e Cofins Importação. As girafas foram enquadradas no conceito de bens e, sendo assim, a permuta teve de ser tributada.

Essa história faz parte de um acervo de disputas tributárias que ultrapassa R$ 5,4 trilhões — o que equivale a 75% do PIB. E essa conta, segundo o Insper, autor do levantamento, está subestimada. Inclui só as disputas com origem nas cobranças da Receita Federal. As ações ajuizadas por iniciativa dos contribuintes não estão contabilizadas.

“O contencioso é a doença, não a causa”, diz Breno Vasconcelos, advogado tributarista, professor e pesquisador no Insper e na FGV. “A gente tem um sistema marcado por complexidade, insegurança e litigiosidade. São causas e efeitos que se retroalimentam. Excesso de complexidade gera litigiosidade, que, por sua vez, gera mais complexidade.”

Uma empresa precisa seguir o que consta em 4.078 normas — ou 45.791 artigos e 106.694 parágrafos — para estar em dia com as suas obrigações fiscais. Se tiver negócios em todo o país, esse número aumenta. Somadas as esferas federal, estadual e municipal, são quase 400 mil leis, decretos, medidas provisórias, portarias, instruções normativas e atos declaratórios.

É como se a cada dia útil 46 novas normas fossem editadas. Os dados constam em um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) sobre os 30 anos da Constituição Federal. “Temos o péssimo hábito de criar novas burocracias e não extinguir as antigas”, diz Gilberto Luiz do Amaral, coordenador de estudos do IBPT.

É uma situação que, além de afetar quem está no mercado, desencoraja aqueles que querem empreender. Marina Thiago, gerente de “advocacy” da Endeavor, uma organização de apoio ao empreendedorismo, conta a história de um empresário que planejava vender feijoada congelada. Ele precisava saber quanto pagaria de tributo. Só em São Paulo, encontrou quatro possibilidades de alíquota e, o pior, a receita de seu prato não se encaixava em nenhuma delas.

“Ele está tendo que repensar a receita da feijoada por medo de ser autuado. E estamos falando somente de um Estado. Como vai ser para vender o produto para o Ceará, por exemplo, que tem regras diferentes de São Paulo? É de uma complexidade enorme”, diz Marina.

Não surpreende que haja unanimidade sobre a necessidade — e urgência — em simplificar o sistema. O problema é que a reforma tributária continua empacada. Enquanto isso, as empresas sentem o impacto direto em seus caixas. Elas precisam dedicar em média 1,5% do faturamento todo ano para se manterem informadas.

Estima-se que os gastos totais cheguem a R$ 65 bilhões só para manterem pessoal, sistemas e equipamentos para acompanhar as mudanças na área tributária.

Todo esse emaranhado de normas, processos e custos para apurar e pagar tributos cai no colo do brasileiro — a ponta da cadeia. O fone de ouvido que você compra, a cerveja que você bebe, o arroz com feijão do almoço, tudo o que você enxergar ao seu redor tem um pedaço da carga que as empresas precisam suportar.

Ainda assim, mesmo munidos de todo um aparato para lidar com as questões fiscais, os empresários não se sentem 100% seguros. “Sempre fica a dúvida se estamos fazendo o certo. As regras não são simples”, diz Leonardo Dias, sócio da BrScan, empresa de tecnologia com sede no Distrito Federal. Ele conta que em certas situações preferiu pagar mais ao governo a correr o risco de, no futuro, se incomodar.

A BrScan tem 750 funcionários e faturamento anual de mais de R$ 78 milhões — se enquadra em um regime de apuração mais complexo, chamado de lucro real. As questões fiscais são tratadas pela área financeira, internamente, e por dois prestadores de serviços: uma empresa de contabilidade e outra de consultoria tributária.

A complexidade da legislação brasileira é tamanha que gera situações esdrúxulas. Algumas empresas estão tendo que convencer as autoridades tributárias do que deveria ser óbvio: que tipo de produtos fabricam. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, ou Carf, última instância para o contribuinte contestar administrativamente as cobranças da Receita Federal, está analisando casos do tipo.

Uma dessas disputas, por exemplo, se dá em torno de alguns produtos da Nivea, a empresa de cosméticos. O Nivea Milk seria desodorante ou hidratante? A resposta determina se a alíquota de IPI será de 22% ou de 7%. Itens considerados essenciais — como os desodorantes — têm tributação menor. O caso ainda está em julgamento.

Com a fabricante americana de calçados Crocs, a dúvida era se ela vende sandália de borracha ou sapato impermeável. Essa não era “a pergunta do milhão”. Valia muito mais: R$ 33,1 milhões. Os conselheiros do Carf que julgaram o caso deram razão à empresa. “É sandália de borracha.”

Eles afirmaram que só poderia ser considerado impermeável o calçado que for coberto até a altura do tornozelo. Com essa definição, anularam uma cobrança extra por direitos antidumping — que se calcula com base na diferença entre o valor do produto no país de origem e o valor considerado na exportação.

É possível que, por causa da complexidade do sistema, algumas empresas tenham até mais contadores e advogados contratados do que profissionais para tocar o negócio propriamente dito. Aquelas que têm atuação nacional correm esse risco.

Douglas Campanini, sócio da Athros Auditoria e Consultoria, explica: “Na construção civil, por exemplo, uma empresa com obras em 50 municípios pode ter dez engenheiros para todas elas, mas, na área fiscal, as regras mudam de um local para o outro e serão necessários profissionais com conhecimento em cada um deles”.

O consultor cita também o setor de segurança. Campanini já teve, entre os seus clientes, uma empresa que presta serviços para agências bancárias em milhares de municípios diferentes. Três andares do prédio, recorda, eram ocupados somente por profissionais que cuidam da área fiscal. “Tem que ter uma atenção enorme. Um erro tributário pode colocar a rentabilidade do negócio ao vento”, afirma.

Existe uma lei federal que regulamenta o ISS, o imposto municipal sobre serviços. Mas cada um dos 5.570 municípios brasileiros tem autonomia para definir a alíquota e fixar obrigações acessórias. O mesmo ocorre com os Estados e a cobrança do ICMS. O Rio Grande do Sul, por exemplo, alterou 558 vezes o seu regulamento em quatro anos.

As três propostas de reforma tributária no Congresso reduzem apenas parte dessa complexidade. A proposta de emenda constitucional (PEC) 45, da Câmara dos Deputados, e a PEC 110, do Senado, preveem tributar bens e serviços por meio de um único imposto, chamado IBS. A PEC 45 eliminaria IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. A segunda é mais ampla. Inclui os mesmos tributos e complementa com IOF, salário[1]educação, Cide-combustíveis e Pasep.

Parecia que o debate iria deslanchar no ano passado. Em fevereiro, os então presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e David Alcolumbre (DEM-AP), criaram uma comissão mista que teria 45 dias para consolidar a proposta de mudança constitucional.

O plano era ousado: previa a votação em até dois meses e o envio do texto diretamente para os plenários das duas casas. Uma audiência pública foi realizada em março, mas, em seguida, os trabalhos pararam por causa do começo da pandemia.

Em julho, o assunto voltou a ficar aquecido. O ministro da Economia, Paulo Guedes, entregou ao Congresso o que seria a primeira parte da proposta de reforma do Executivo. O projeto de lei 3.887 é bem menos ousado que as PECs. Substitui somente o PIS e a Cofins por um novo tributo: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Nesse mesmo mês, a comissão mista foi reativada. Mas, por divergências políticas, o trabalho não foi para a frente. O prazo para a conclusão era 10 de dezembro.

O relatório final não foi apresentado, e as atividades acabaram sendo prorrogadas para até 31 de março.

No começo deste ano, com a troca de comando do Congresso, as promessas em torno da reforma tributária foram renovadas. Os novos presidentes da Câmara Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), listaram o tema entre as prioridades.

O assunto, por si só, é complexo. Uma reforma mais ampla, além disso, depende de Estados e municípios, o que torna esse processo ainda mais difícil. ICMS e ISS — que podem ser extintos com a aprovação das PECs — são as principais fontes de arrecadação deles. Ninguém quer dar um passo em falso. Ainda mais em um momento de forte crise econômica.

A União, por outro lado, precisa de uma solução para o PIS e a Cofins. As contribuições estão no topo do ranking de litígios. Correspondem a 36% de todas as ações judiciais movidas pelos contribuintes para questionar tributos federais. Questões relacionadas ao Imposto de Renda das empresas, por exemplo, somam só 5%.

Existem duas questões principais para essa dor de cabeça: o sistema da não cumulatividade do PIS e da Cofins e a inclusão de outros tributos na sua base de cálculo.

A não cumulatividade gera crédito às empresas. Significa que a tributação embutida nas compras de produtos considerados essenciais para o negócio pode ser descontada do cálculo a pagar ao governo. Isso abre uma ampla gama de interpretações. Contribuintes e Fisco brigam como cão e gato sobre quais bens e serviços entram nesse pacote.

O que mais preocupa o governo, no entanto, é a discussão do “tributo sobre tributo”. Representa 70% das ações relacionadas ao PIS e à Cofins. E quando se fala em valores, até assusta. A principal discussão tributária no país — chamada de tese do século pelos advogados — trata da exclusão do ICMS da base de cálculo dessas contribuições.

Sem a parcela do imposto estadual embutida na conta, os valores a pagar em PIS e Cofins ficam menores. A equipe econômica diz que o impacto aos cofres da União é de cerca de R$ 250 bilhões, considerando, aqui, as devoluções aos contribuintes que, por anos, foram cobrados de forma indevida.

Esse ambiente de guerra também não é bom para os contribuintes. No ano passado, até setembro, a União havia vencido 31 dos 37 julgamentos tributários realizados no Supremo Tribunal Federal, segundo dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Se contabilizado em reais, o placar ficou em R$ 527 bilhões para a União contra R$ 48,13 bilhões para os contribuintes.

“Toda a complexidade do sistema está no colo do contribuinte. Ele contrata meio mundo, decifra, interpreta, declara, paga o tributo e ainda precisa esperar pelos próximos cinco anos para não ter mais riscos de autuação”, diz o tributarista Breno Vasconcelos.

Perde-se, além de dinheiro, muito tempo com isso. Segundo o “Doing Business”, ranking do Banco Mundial que trata da regulamentação do ambiente de negócios, as empresas brasileiras gastam 1,5 mil horas por ano para calcular e pagar tributos.

O Brasil é o último de uma lista de 190 países. A média registrada nos demais países da América Latina, para se ter uma ideia, é de 300 horas por ano. Já a dos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 150 horas.

A Endeavor e a Ernst & Young utilizaram os dados do “Doing Business” para simular o impacto que haveria no Brasil com uma reforma tributária. Das 1,5 mil horas gastas atualmente pelas empresas, 885 são direcionadas para apurar e pagar PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS — tributos que, se levadas adiante as PECs 45 e 110, serão unificados e transformados em IBS. Essa transformação, segundo consta na pesquisa, reduziria em 68% o tempo gasto com a tributação. Diminuiria de 885 para 285 horas ao ano.

Se levado em conta o projeto do governo federal somente, menos abrangente que as PECs, a redução seria de 34%. Em vez de gastar 885 horas, os contribuintes levariam 585 horas para apurar e pagar a CBS e os demais tributos que incidem sobre bens e consumo que não seriam extintos.

“Nós defendemos a reforma mais ampla. ISS e ICMS têm um nível de complexidade muito grande. A CBS, mesmo reduzindo a quantidade de tempo gasto, ainda não seria suficiente para deixar o Brasil alinhado com os demais países. Continuaríamos com muitas horas a mais”, afirma Marina Thiago, da Endeavor.

O principal temor do mercado com relação à reforma é a possibilidade de haver aumento na carga tributária. Os prestadores de serviço que estão no regime do lucro presumido, por exemplo, sairiam de uma alíquota de PIS e Cofins de 3,65% para 12% com a criação da CBS.

O principal temor do mercado com relação à reforma é a possibilidade de haver aumento na carga tributária. Os prestadores de serviço que estão no regime do lucro presumido, por exemplo, sairiam de uma alíquota de PIS e Cofins de 3,65% para 12% com a criação da CBS.

Tributaristas dizem que a mudança poderia afetar mais aqueles que dependem do consumidor pessoa física. Porque teriam mais dificuldades de fazer o repasse no preço — restaurantes, salões de beleza, escolas, serviços médicos e profissionais liberais entre eles. Preocupa, além disso, a forma como ocorreria a transição do sistema atual para o novo, seja IBS ou CBS.

“Fazer reforma sem antes simplificar o sistema tributário brasileiro é, na verdade, ampliar a complexidade. Hoje nós temos uma legislação espalhada. Essas regras deveriam ser compiladas, e as burocracias desnecessárias, eliminadas. Porque imagine que por muito tempo o contribuinte terá que conviver com dois sistemas, o antigo e o novo”, observa Amaral, do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação.

A ROIT, empresa de contabilidade e tecnologia, prevê enormes gastos com a transição. A projeção é de que as empresas tenham que desembolsar mais de R$ 500 bilhões com serviços de contabilidade e implantação de novos sistemas. “Estamos falando de 7% a 8% do PIB só de gastos em gestão tributária”, afirma Lucas Ribeiro, sócio da empresa.

Não haverá solução fácil. Uma reforma fatiada, como defende o governo, geraria menos custos de transição, mas não resolveria todo o problema. A reforma mais ampla, por outro lado, envolve tantas partes interessadas que, na visão dos advogados, ainda é difícil acreditar que sairá do papel.

Para Ribeiro, além disso, não haverá solução sem uma mudança de cultura. “O Fisco, hoje, é o mocinho, e os empresários são os bandidos. Não existe parceria. No Brasil, para tirar uma dúvida, por exemplo, o contribuinte precisa fazer uma consulta formal e esperar por muito tempo, meses, para que alguém responda”, diz, acrescentando que, até essa resposta vir, o empresário fica sujeito a fazer a operação de forma errada e ser autuado.

A relação conturbada, avalia Ribeiro, é “um dos grandes problemas da burocracia brasileira”. Ele lembra do dia em que precisou fazer uma consulta ao Fisco da Espanha. “Eu estava com um cliente e, diante da dúvida, ele disse: ‘Vamos ligar’. Não acreditei que daria certo. Mas deu. Conversamos com o fiscal por telefone, ele falou o que achava sobre o assunto e disse que entraria em contato para confirmar. À tarde chegou um e-mail com toda a explicação do que deveria ser feito. A postura, em outros países, é de parceria. O Fisco ajuda o empresário a se desenvolver e ter sucesso para conseguir arrecadar mais.”

Compartilhe